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Necropolítica como ferramenta de extermínio do Estado: Psicologia como ferramenta do Eros

Foto do escritor: Eliel LimaEliel Lima

Uma criança abandonada no elevador, nove andares e uma vida despenca matando mais uma vez uma comunidade. Uma menina que caminhava alegre para a escola tem seu corpo e sonhos perfurados. Um pai de família, 80 tiros, um pai de família morto diante dos seus filhos, como Lispector já disse "qualquer que tivesse sido o crime dele, uma bala bastava. O resto era vontade de matar.” Mas não era criminoso, pelo contrário, tinha sobre si o amor da esposa e dos filhos como manto, manto que cobria seu corpo alvejado de balas e lágrimas. 



Esse texto tem em si uma urgência social, com um contexto já muito debatido, mas que ainda parece estacionado, claro que essa inércia tem origem nos jogos de poder que iremos tentar desmembrar hoje, esse entre- trincheiras que se apresenta ao longo do que será exposto nos convoca como pessoas-profissionais que pretendem querer saber ouvir o sofrimento do outro, entretanto, parte da repulsa em tratar desse tema é devido a um empobrecimento do debate como recurso para minar movimentos sociais autônomos, contextualizando a história nos afastamos um pouco dos leitores já muito contaminados por determinadas formas de ver o mundo, a meu ver, formas que deformam a realidade e impedem uma aproximação afetiva dos apontamentos aqui selecionados. Como profissionais terapeutas/ analistas precisamos compreender o paciente, consciente de que ele é a singularização da história da sua família e comunidade. Ele é historia encarnada. (SAFRA, 2004)


Para iniciar nossa conversa tomo de empréstimo nesse momento o conceito de necropolítica de Achille Mbembe que o entende como um exercício do poder matar, fazer morrer, executado pelo Estado (entranhado da lógica colonial) através de alguns artifícios, como, por exemplo, o estado de exceção. Esses artifícios e a lógica sobre a qual essa dinâmica ganha concretude tem na raça a sua coluna espinhal. Portanto falaremos sobre colonização; corpos ganhando significado material exploratório subdividido por raça; espaços geográficos como exercício da soberania. 


“Uma raça é um signo, lido nos corpos, de uma posição na história e de pertença a uma paisagem que sofreu a invasão que chamamos de ‘Conquista’ e a expropriação colonial, sendo a própria raça uma consequência e parte dessa paisagem.” (SEGATO, 2021)

Com o advento da modernidade temos visto muito das formulações antes estabelecidas sendo reestruturadas, tanto dentro da racionalidade ocidental quanto nas suas práticas e dinâmicas inter/extra relacionais, sob uma égide exploratória fortificada pelas novas tecnologias de navegação no capitalismo (que se inicia nesse tempo) começa a ganhar uma roupagem que necessita de uma estrutura que coisifique pessoas para o bel prazer do “desenvolvimento”, com essa missão sendo posta em prática surge o Outro racializado como aquele inferior, diferente, exótico, temido e sexualizado e obedecendo a esse mecanismo perverso, sendo “coisa”, esse Outro racializado pode ser também comercializado, expropriado, explorado, sobretudo, sendo coisa seus territórios tornam-se fontes de riqueza e de expropriação, pois agora como figura comercializada também sua história, cultura e signos são apreendidos, vide os museus europeus e norte americanos detendo uma gama extraordinária de artefatos da cultura dos povos explorados/escravizados, relegando a estes uma terra sem recursos e habitada por conflitos por eles gerados. 



Quando contextualizamos o Brasil dentro desse cenário temos um país em que seus colonizadores dizimaram sua população originaria, o ultimo país do continente americano a abolir a escravidão e que abolindo criou diversos mecanismos de impossibilidade de existência para essa população. “Estamos falando de um trauma transgeracional que, por causa da alienação colonial, nunca tivera sido trabalhado, mas sempre existiu e é existente ainda”. (EMILIANO,2021) 


Portanto, é urgente a necessidade de pensarmos um social pautado num dinamismo psíquico que foi impossibilitado de digerir os acontecimentos históricos aqui produzidos, pelo contrário, devido ao processo “civilizacional” o poder hegemônico que controla as narrativas constrói uma perspectiva do “bom crioulo” enquanto põe em prática uma estratégia de embranquecimento populacional (altamente documentado) temendo a “mancha negra” que assolava o Haiti (referência as revoltas que lá aconteciam). 


É necessário nesse momento elucidar da forma mais precisa possível: Existiu no Brasil um processo pensado pela hegemonia do poder para causar o apagamento histórico das pessoas negras aqui habitadas, esse apagamento reverbera até os dias atuais através do epistemicídio, encarceramento em massa da população, níveis de saúde precários que atingem muito mais essas pessoas por seu recorte econômico (também planejado) e por aí vai. O que precisamos nos ater enquanto profissionais dedicados a luta social e emancipação do povo (código de ética ta ai não é de enfeite) é que esses eventos constituem uma população, esses eventos mal trabalhados e sufocados por outros interesses são frutos podres que necessitam de cuidado, pois “um acontecimento que permaneceu clivado no psiquismo de uma geração — impossibilitado de circulação e figurabilidade — é transmitido enquanto lacuna de memória para a próxima geração”. (EMILIANO, 2021) 


Esse poder hegemônico que alço nesse texto ganha o contorno do Estado para Achille, e como um dos mecanismos que exercem essa força que sufoca uma população, temos o estado de exceção sendo praticado. Esclareço, entretanto, que para o autor o país que mais se inscreve claramente nesse cenário necrolítico é a Síria, enquanto um povo assolado pela destruição causada por Israel. Todavia, valho-me do conceito que me instiga para provocar os leitores. 

Estado de exceção nada mais seria do que a suspensão do direito existente, no interesse de uma ação eficaz. Claro que essa ação constitui um dilema constitucional, exemplificando: Em novembro de 2010, através de decreto presidencial, autorizou-se a atuação das Forças Armadas na chamada “ocupação” do Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro. O Artigo 144 da Constituição Federal não prevê o emprego das Forças Armadas para cuidar da segurança pública. Porém, outro decreto presidencial, o de no 3.897 de 2001, permite esse emprego de “forma episódica”, em “área previamente definida” e pela “menor duração possível”, em nome da “garantia da lei e da ordem”. Tal decreto cria a curiosa situação jurídica de uma legalidade inconstitucional. 


Sobre a alcunha de “guerra ao tráfico" o Estado executa em determinado território ações violentas sobre o pseudo benefício de pacificar essa terra-objeto do Outro coisificado, entretanto, quando observamos o cenário que se apresenta, perguntas são levantadas “como as drogas chegam às comunidades? Quem permite sua importação? Não foi o avião da FAB a pouco tempo apreendida por que era usada para exportação de coca??”, ou melhor, temos recentemente, devido a possibilidade de gravarmos com o celular, diversas falas que denotam um espaço-território ocupado por pessoas outras que não essas racializadas, falo dos casos recorrentes de apreensão no condomínio de luxo de Alphaville, onde regados pelos privilégios as pessoas que devem ser detidas ofende policiais sem que nada aconteça. 


“A cidade do povo colonizado (...) é um lugar de má fama, povoado por homens de má reputação. Lá eles nascem, pouco importa onde ou como; morrem lá, não importa onde ou como. É um mundo sem espaço; os homens vivem uns sobre os outros. A cidade do colonizado é uma cidade com fome, fome de pão, de carne, de sapatos, de carvão, de luz. A cidade do colonizado é uma vila agachada, com uma cidade sobre seus joelhos. [...] As vilas e cidades sitiadas são cercadas e isoladas do mundo. O cotidiano é militarizado. É outorgada liberdade aos comandantes militares locais para usar seus próprios critérios sobre quando e em quem atirar. [...] Matar incorre em mirar com alta precisão.” (Mbembe, 2015)



Por último, cabe-nos dentro desse desenrolar histórico observar como esses espaço-territórios estão sendo construídos à periferia das cidades como única possibilidade de moradia-existência de uma população, complexificando o acesso ao lazer, ao trabalho, à cidadania e aos mais diversos aparelhos estatais que deveriam gerir a garantia de direitos, mais especificamente, faço referência às comunidades, estas que o Estado compreende que necessita da mão pacificadora da bala que atravessa corpos inocentes mas não arma a população com a caneta que possibilita a autonomia, a saúde que enfatiza a possibilidade de qualidade de vida e o lazer que ajuda a compreender seu espaço como aquele que propicia o acolhimento das suas experiências, como diz Segato (2021) “A paisagem é vista como um monumento inscrito por acontecimentos de expropriação, redução à servidão e extermínio, também os corpos são vistos como paisagem, “terra que anda” [...] emanações de um espaço geopolítico dominado, colonizado, que nos constitui e que pode ser lido em nossa corporeidade.”


Ora, o que tem a psicologia haver com isso? 

Talvez possamos refletir sobre o que Rita Segato nos diz para começarmos a esboçar uma resposta sem fim: “Somente a raça remete ao horizonte que habitamos, marcado pelo evento fundacional da Conquista, e permite reconstruir o fio das memórias afetadas pelas múltiplas censuras da colonialidade.”


O código de ética aborda em em seus princípios fundamentais um valor que deve aqui ser lembrado, onde diz: “O psicólogo atuará com responsabilidade social, analisando crítica e historicamente a realidade política, econômica, social e cultural.” Com isso venho dizer aos colegas de profissão que atuar em psicologia sem levar em consideração, ou melhor, sem ao menos se debruçar sobre esses aspectos é uma falha que atinge diretamente a percepção sobre essa população acolhida pelos nossos serviços, sobretudo, o manejo clínico de uma pessoa desorientada no cenário sócio histórico propicia apenas mais uma forma de silenciamento quando nossa profissão é reconhecida por sua escuta ativa. 


Pertencer a uma raça faz parte de um engajamento subjetivo, estrutura relações e posições e essas inerentemente fazem parte da experiência do sujeito no mundo e ignorar isso é impossibilitar que o próprio sujeito surja. A psicologia como ferramenta da vida (do eros) é uma ciência que nos coloca à disposição do sofrimento, nos permite alcançar dimensões íntimas dessas estruturas e nos permite trocas que auxiliam uma transformação social, certa vez li num livro que não me recordo qual que quando a psicologia não se pretende como uma agente de transformação social colabora com a degradação do mundo. É nosso papel compreender a relação da racialidade na construção das identidades e nas formações de grupo (grupo Brasil), mas sobretudo evitando as dinâmicas de apagamento e violência que vilependiam uma comunidade e transbordam o balde do apagamento social. E quando de frente para uma pessoa racializada é sempre crucial lembrar que a re-inserção da memória é cura em diversas situações de sofrimento humano. 






Referências 

Estado de exceção como anormalidade jurídica 

O que é estado de exceção?

Ensaio sobre a necropolitica – Achile Mbembe 

Clarice Lispector – Reflexões sobre crime e punição 

O trauma colonial e os rumos da psicanálise (à) brasileira 

Crítica da colonialidade em oito ensaios – Rita Segato

A po-ética na clínica contemporânea – Gilberto Safra 

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1 Comment


Unknown member
Sep 27, 2024

poe figura de todos os presidentesss.... nunca brasil teve politico... todos bandidos....usam o dinheiro do povo....

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