“Que temos em comum com o botão de rosa, que estremece porque sobre o seu corpo há uma gota de orvalho?” – Assim falou Zaratustra
Quando fiz uma caixinha de perguntas no meu instagram a respeito do tema que as pessoas que acompanham meu trabalho gostariam de ver, uma das respostas foi “trauma” e imediatamente comecei a pensar de que forma eu articularia um tema tão complexo e espinhoso. A pessoa se refere à revivesciencia de um evento? Ou seja, a fixação uma cena e sua reaparição constante e intrusiva ao longo da vida? Ou estaria falando sobre como uma pessoa pode reagir diante de um choque tão forte que a marca? Quais tipos de patologias podem surgir a partir desse choque? Ou talvez, como lidar com um evento traumático? Bem, para iniciar esse debate devo abrir mão das muitas questões que me sobrevém e focar em uma direção e espero não estar criando uma relação unilateral com quem me lê nesse momento.

De certa forma, ao responder uma questão às demais se articulam em produzir elas mesmas caminhos que apontam saídas. Portanto, tentarei expor como ocorre o processo de fixação de um evento traumático no cerne da psique.
Os eventos traumáticos podem ocorrer em qualquer período do desenvolvimento humano, com qualquer sujeito e em qualquer lugar, toda pessoa que estabeleça (ou tenta estabelecer) contato com o Real e tem esse contato perturbado pode ser surpreendido em sua dinâmica intrapsiquica com bloqueios, fixações ou rompimentos que dificultam a sua relação com o mundo e consigo mesmo podendo trazer prejuízos severos nessa dinâmica.
É importante salientar que devido nossa cultura e as trocas que temos com a tecnologia vemos um constante empobrecimento dos entendimentos relativos à saúde (mas não só dessa área). Muito dos termos popularizados são esvaziados de sua importância e um desses temas é o trauma, a seriedade do tema não pode ser relativizada, é necessário que se fale mais sobre aspectos da psique nas mais diversas mídias, sobretudo, como os aspectos socioculturais e econômicos possuem (dentro da realidade comumente compartilhada) estruturas que dão base solida ao processo de adoecimento.
Trauma pode ser conceituado como toda situação real que possui potencialidade traumatizante, podendo modificar a geografia psíquica do sujeito que vai sofrendo transformações a curto, médio e longo prazo. Para a teoria psicanalítica o trauma é um conceito amplamente estudado e de certa forma inerente ao desenvolvimento de todos os neuróticos, ou seja, experiências que são vividas no passado são re-experimentadas em outro momento e vividas com intensidade traumática, entretanto o que proponho aqui é não focar tanto nesse aspecto constitutivo do sujeito, mas pensar em uma situação potencial que desencadeou por algum motivo um conjunto de sintomas que hoje (re-vivenciados) paralisam suas “vitimas”.
Explicado o que é um trauma podemos selecionar o que mais nos interessa dentro dessa dinâmica: a experiência de fixação no trauma. Essa paralisação que causa grande sofrimento pode ter na compulsão a repetição uma via de compreensão para o fenômeno. Na opinião de Lacan, a compulsão à repetição porta um paradoxo: 1) ela faz surgir um ciclo de comportamento que se inscreve nos termos semelhantes a uma resolução de tensão do binômio necessidade-satisfação, recalcando um significante – grosso modo, significante é o significado de uma experiência/palavra/símbolo atrelada a historia de vida do sujeito –; contudo, 2) qualquer que seja a função interessada nesse ciclo não é errado dizer que o que ela quer dizer enquanto compulsão à repetição é que ela está ali também para fazer surgir, para trazer de volta, para fazer insistir alguma coisa que é essencialmente da ordem de um significante. Esse retorno que não cessa de voltar é entendido por Freud como uma tentativa de resolução de todo o conflito dentro dessa dinâmica psi. O próprio psiquismo cria para si a representação capaz de lhe causar o afeto penoso e esse sintoma serve como uma tentativa de cura espontânea, busca assim a tentativa de uma nova forma de se satisfazer diante de uma perturbação. Sobretudo, Lacan irá pontuar a repetição como uma tentativa de dominação do episódio traumático (FAVERO, pag. 40; 130)
Essa dominação reflete uma inversão de posição. Enquanto o individuo se encontra sobre o julgo traumático é passivo à toda sorte de seus efeitos, somente tornando-se ativo através de uma autonomia (conceito que podemos discutir em outro momento) ele pode começar o processo de resolução das suas feridas abertas.
O sintoma não é, portanto, apenas um problema, mas uma solução, uma resposta, por vezes precária, para conflitos que constituem o próprio sujeito e localizam o ser em sua existência.” (DUNKER, 2002)
Posto isto, devo me voltar agora para a estrutura sintomatológica dos traumas, ora, porque um individuo responde de uma forma enquanto outro responde de outra forma diante de uma cena traumática? Talvez o clichê dentro da psicologia esconda a verdade delimitada – todo clichê na verdade faz isso –: toda sintomatologia apresentada na vida de um sujeito se liga diretamente com a historia de vida deste. Somente caso a caso poderemos entender como o processo de desenvolvimento das suas questões culminou em “a” ou “b”.
Uma vez compreendido que um trauma é aquilo que ocorre na ordem do inassimilável, que a fixidez da cena se dá através de um mecanismo de repetição com o intuito de encontrar uma solução para a dinâmica psi perturbada e que o sintoma é forjado através de características próprias de cada sujeito na intenção de responder – encontrar novos caminhos – às inferições internas do mesmo, cabe-nos perguntar. O que fazer?
Talvez eu traga novamente uma resposta muito obvia para essa pergunta: psicoterapia!
Tendo a psicologia e psicanálise ferramentas estruturadas em uma teoria e praticas pautadas em uma cientificidade é licito eleger as mesmas como as alternativas onde as pessoas podem encontrar os melhores recursos para seus sofrimentos psíquicos, entretanto, é de responsabilidade de cada pessoa buscar a compreensão da desordem da qual se queixa, lembrando sempre do que o filosofo já disse: “Há mais razão em seu corpo do que em tua melhor sabedoria”. (NIETZSCHE, 2011)
Eliel Lima
Psicólogo - CRP 05/70226
• Interessado em descolonialidade, relações étinico-raciais, processo de autoritarismo/formação de massa e estudos de cultura.
Referencias:
O calculo neurótico do gozo – Cristhian Dunker
Assim falou Zaratustra – Friedrich Nietzsche
A noção de Trauma em psicanálise – Ana Beatriz Favero
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